Borboleta - a menina que lia poesia, de Chris Herrmann, resenhado por Solange Firmino




Tentando desvelar os tons...
Por Solange Firmino


“Borboleta - a menina que lia poesia”, romance de estreia de Chris Herrmann, que resolveu se aventurar pelo campo fértil do gênero, é lúcido e elegante. E Maria Rosa, a borboleta-poeta, pseudônimo e alter ego da autora, é bastante empenhada em utilizar as palavras. Talvez por que as mãos que deram vida à personagem tenham sido as de uma experiente poeta e haicaísta.

A autora não quis fazer uma interpretação crua da vida, mas mostrou sua personagem como uma borboleta nascida na Floresta Amazônica, cujos pais morreram e que descobriu sua doença em uma casa para crianças sem lar. Enquanto a família se desfez na miséria, Maria Rosa se alimentou de ‘sonhos e letras’.

Para a pergunta “com quantos tons se retoca a vida de uma borboleta?” a autora respondeu dividindo o livro em oito capítulos coloridos, nomeados tanto de acordo com a metamorfose de uma borboleta biológica, como de acordo com virtudes e valores humanos. Então temos como exemplos, “Do ovo à luz”, “O amor”, “A gentileza”. Quem puder ter o livro em mãos, vai poder conferir as fotos das borboletas coloridas nos capítulos, o sumário, a capa, tudo lindo.

Sabe aquele pensamento, “quando os olhos olham com amor, o pigmeu é gigante”?; pois é, a borboleta-poeta acha isso, que “o belo pode existir no feio quando captado pelo olhar da poesia”. E afirma a importância da poesia para o sentido da vida. Gosta não apenas da poesia escrita, e sim de toda a poesia que chega até ela, como a pintura, a escultura, a dança, a música, etc. Sua realidade ficaria mais pobre sem poesia. Assim, ela vê poesia nos cabelos que caem, no cuidado das enfermeiras, no médico...

"Humildade,
um pequeno gesto imenso
de humanidade
encanta até as borboletas."

É sabido que a personagem está doente. No seu “casulo maior” chamado hospital, ela escreve os próprios poemas, e lê outros para melhorar os seus, enquanto está internada, fazendo lembrar o poeta Manuel Bandeira, tuberculoso e sempre em observação, mas a vida toda poeta. Internada, a borboleta começa a sentir a poesia/adeus dentro de si.

"Talvez haja um adeus que mora dentro da gente aqui no casulo maior, mas ele não se pronuncia, não se explica. É um nada que se engasga na garganta da gente e que é, ao mesmo tempo, necessário..."



Como a poesia serve para elaborar nossas incompletudes? Como se estivesse lendo a obra “O último poema”, de Manuel Bandeira, (Assim eu quereria o meu último poema./Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais./Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas...). A tendência à melancolia foi fundamental em todo o trabalho do poeta, que sempre achou que ia morrer cedo de tuberculose, mas acabou morrendo aos 82 anos. O poeta descreveu o “mau destino” no poema “Epígrafe” (Sou bem-nascido./ Menino,/Fui, como os demais, feliz./Depois, veio o mau destino/E fez de mim o que quis...)

O mau destino de Maria Rosa foi a metamorfose. Assim como nem todos estão preparados para morrer, ela não estava preparada para a revolução que a metamorfose provocaria em seu corpo:

"Metamorfose
a revolução anônima
que ninguém me perguntou
se eu estava preparada
nem se eu a desejava"

No caso, assim como o poeta Manuel Bandeira, a borboleta-poeta também sofre de uma doença crônica e compõe versos, digamos, de forma terapêutica. A jornada (espiritual) do poeta é criar, e nunca está pronto para partir. Como compreender que a alma é delicada, senão com a borboleta?

"O espírito
poderá voar para onde
nossos olhos
nunca alcançaram.
mas não se esqueça
de deixar os pesos para trás.
só as coisas pequenas
cabem na leveza da alma."

O poema abaixo enaltece o aparentemente trivial, e capta o instante do universo exterior em que a borboleta-poeta encontra-se, muitas vezes, desejosa de uma delicadeza. Mas dessa relação social, ao apurarmos a percepção da necessidade de transformar a si mesma e o outro, surge o estímulo que emana Luz como instrumento de reforma interpessoal. E as pesquisas indicam que a gentileza faz bem à saúde!

"Gentileza.
Semente que se planta
dentro e fora da gente,
mas que todos colhem,
tão discreta e suave
acalentando momentos...
Que na sua grandiosidade
não passe despercebida."

É uma leitura nada inocente por trás da ilusória fragilidade dos versos. A borboleta-poeta reverencia uma linguagem enxuta, da poesia extraída das circunstâncias, do mundo que a cerca. Trata-se de um momento reflexivo, para colocar em ordem os pensamentos e para escutar a poesia e o ciclo da natureza:

"A poesia de outono
Começa na folha que cai,
mas não para por aí.
Ela continua na folha
que ainda está para cair."

Como uma criança que acabou de dominar as palavras, a borboleta brinca, vê que pode mexer com as sílabas, faz delas traquinagens. As borboletas têm licença poética para tal...
Há um jogo de linguagens em toda a obra. O poema “Democracia” (mais abaixo), brinca com as palavras plural e singular.
Aqui, as palavras pesar/leveza, com o equilíbrio da asa da borboleta, e pesar da melancolia pela sua doença:

"O equilíbrio
da borboleta
não se mede
pelo tamanho
de suas asas,
mas pela leveza
que elas carregam,
a pesar de tudo
Então:
duas levezas
e uma medida."



O filósofo Jean-Jacques Rousseau acreditava que o homem tinha duas vontades: uma enquanto indivíduo, outra enquanto membro de um grupo social. Como indivíduo, é tentado a querer o interesse individual; como homem social, procura o interesse geral. Só se pode falar em Vontade geral quando, apesar das divergências entre os componentes do corpo social e das discussões que se devem travar entre eles, exista um ou vários elementos comuns capazes de movê-los na mesma direção. Um dos grandes problemas de vários países é não entender essas diferenças. Aqui, a borboleta-poeta certamente não falava da Vontade de Rousseau, mas a liberdade com que ela se desprendeu da realidade nos três últimos versos foi tão grande que me fez lembrar imediatamente de Rousseau:

"A prática
não depende da teoria,
mas da vontade.
Hoje pratiquei a pequenez
Das coisas sem tempo
e suas intensidades."

Outro filósofo de quem lembrei foi Epicteto, uma das vozes mais influentes da Antiguidade, que viveu nos primórdios da Era Cristã, de 40 a 125; para quem o básico da vida feliz é aceitar as coisas como elas são. Revoltar-se contra os fatos não os altera, e ainda traz uma dose desnecessária de tormento. Pois a borboleta-poeta era meio filósofa nesse ponto, ela sabia que:

"Não podemos estar sempre alegres ou tristes. Não há uma só felicidade, nem um só tormendo. Há uma vida."

"Sei que não viverei muito tempo, mas o tempo que ainda me resta, gostaria de sentir mais a essência da vida e menos a fragilidade do corpo. Meu corpo não acompanha a vida que canta, viaja, sonha, dança rock e bumba meu boi na minha mente."
Todos sabem que temos o tempo contado de vida, a borboleta principalmente, mas não aceitava tão facilmente. As pessoas que estão em tratamento aproveitam mais a essência da vida e o presente, quando passam por experiências relacionadas às doenças crônicas. Em seu tormento, a ‘borboleta-filósofa’ aderiu também ao carpe diem, frase em latim de um poema de Horácio (poeta romano da Antiguidade), popularmente traduzida como “aproveite o momento”. Horácio já trazia uma filosofia mais epicurista em seus poemas, mas o tema do carpe diem, brevidade da vida e busca da tranquilidade ficaram marcados até hoje.

"Pouco tempo?
Abaixo o tempo cronológico!
viva o tempo das intensidades!"

Já que estamos falando de Filosofia, continuamos com um conceito aristotélico, que pode explicar o sentido do poema abaixo. Segundo Aristóteles, o ser humano é um animal político. No caso, temos a alegoria das borboletas. O que importa aqui é o caráter comunitário dessa filosofia, o cultivo de determinadas virtudes ético-políticas presentes nessa convivência, como justiça e amizade, essenciais para a comunidade da pólis (no caso, do jardim singular).

"Democracia
- é preciso sair do casulo,
pois que há uma porção
de outras borboletas
de todas as cores
que ao se descobrirem plurais
tornam-se fortes no jardim singular."

Mas a comunidade da pólis não é apenas formada por muitos homens/ou por muitas borboletas, mas também pela diversidade que eles apresentam. A diversidade cultural, o multiculturalismo, a identidade negra, as relações raciais ou que nomes tenham, são totalmente ocultadas pelo espaço escolar. Esses temas somente são trabalhados na semana do dia 20 de novembro, nas comemorações da chamada “Consciência Negra”.

O ser humano vive enclausurado em si mesmo, a diversidade que vai ao encontro do amor e nos transforma, reflete no olhar, não no espelho. Quando a maioria só conhece o que é espelho, o conhecimento surge como um artifício para sair do estado de ingenuidade. Para a borboleta-poeta, aprender com os erros era fundamental. Ela então ensinou às crianças preconceituosas que a beleza estava na diversidade, então contou o mito de Narciso quando houve um caso de desrespeito.

"Despreconceito
É a compreensão do outro na gente."

"Tolerância
são nossos pés pesados
marcando por caminhos
desconhecidos de nós.
São nossas mãos
criando trilhas e
encurtando espaços
em direção ao outro."

A borboleta, mesmo doente e cansada, fez viagens, passeou pelas tradições humanas sem sentido, viu crianças que não brincavam com outras no recreio porque estavam com seus celulares. Nos seus voos diários, visitou cidades como a Cuiabá de Manoel de Barros; Recife de João Cabral e Manuel Bandeira; Maranhão de Ferreira Gullar; Paraíba de Augusto dos Anjos e dezenas de outras.

Reconhecer-se perdida está longe de implicar a submissão ao medo, então, a borboleta-poeta se camufla na própria linguagem, fazendo dela um lugar onde se manifesta. Camufla-se quando se manifesta, mas ao mesmo tempo se revela no ato de se esconder, desvelando um dos mais belos poemas do livro:

"O medo e as asas
O medo é um ser invisível,
feito de um material pesado
e olhos cabisbaixos.
as asas, visíveis ou não,
são tão leves
que abraçam um céu
com olhos de plumas
que apontam rumos."


Falando em rumos, o homem não pode viver sem procurar pelos seus próprios caminhos, ou seja, em algum momento, a maioria busca pelo significado do sagrado. Como disse Ferreira Gullar “a vida só consome/o que a alimenta”.  A borboleta-poeta também alcançou sua experiência metafísica, e entendeu que os contrários se coincidem, a vida devora, mas também presenteia:

"Então, fiquei pensando que, para mim, só existe uma forma de presente: o hoje e agora, regalo que nem sempre enxergamos."

E quando sua experiência muda para algo totalmente significativo, no meu entendimento, para algo de valor para a borboleta também, ela entende tudo. Mesmo com pouco tempo, ela compreendeu o quanto ele foi suficiente, pelas amizades que fizera, por tudo o que conquistara. É quase um elemento na estrutura da consciência humana, um modo de ser no mundo. Essa é a borboleta-poeta mais sábia que existiu. Desconfio que era filósofa.

"O presente
chegou embrulhado de pouco tempo,
mas sua consistência era suficiente
para surpreender a borboleta
com luzes e cores
de todos os prismas"

Deparamo-nos finalmente com a poeta-borboleta, digo primeiramente poeta, depois borboleta, que sente a mutação da vida pulsando, a transformação em processo, buscando saber cada vez mais e melhor, argumentadora da sua expressão poética e da capacidade de concentrar o máximo da vida nos mínimos instantes de poesia. E não há palavras que possam exprimir esse sentimento:

"Aprendizado,
aprendi que nunca terminei
de apreender a vida.
Que ela seja intensa
enquanto viva."



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Solange Firmino é carioca, professora do Ensino Fundamental
e de Língua Portuguesa, cronista e poeta. Publicou livros de poemas
e tem participação em diversas coletâneas de poesia brasileira.


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