Borboleta - a menina que lia poesia, de Chris Herrmann, resenhado por Nic Cardeal
PORQUE BORBOLETAS TAMBÉM SÃO POETAS DE VENTANIAS E ESPERANÇAS
Por Nic Cardeal
BORBOLETA – a menina que lia poesia é o mais recente livro escrito e
publicado por Chris Herrmann (São Paulo: Patuá, 2018), que conta a
história de uma menina órfã de 14 anos, que vive sua adolescência em um
hospital.
Maria Rosa vê o mundo pelas lentes da poesia, das
‘viagens’ que faz a bordo da sua ‘asa de borboleta’ chamada imaginação,
dos livros que vai devorando em sua imensa sede de vida, já tão pouca e
tão fina... Como bem dito por Adriana Brunstein, na primeira orelha,
“(...) os livros que emprestaram os olhos à Maria Rosa, para que ela
pudesse ser ovo, lagarta e pupa, mas jamais adulta. Não no sentido que
conhecemos (...)”.
A menina é conhecida como Borboleta porque,
ainda tão pequenina, já costumava correr atrás das borboletas. Maria
Rosa não fala desde que teve um sonho, aos 7 anos, do qual não se lembra
– quem sabe emudecida por tantos traumas - perdeu os pais no curto
espaço de um ano, quando tinha apenas 3 anos -. A menina navega em
universos paralelos cujo barco é a poesia. A descoberta de uma leucemia
leva Maria Rosa, aos 14 anos e depois de 11 anos vivendo em uma creche -
"uma casa para crianças sem família" -, a ter de ir morar em um
hospital, para tratar da doença, tendo de encarar nua e cruamente a
situação: “(...) Lá as outras crianças têm o mesmo diagnóstico que eu:
câncer. Não é uma palavra bonita, é? Não entendo porque faz parte do
horóscopo. A pessoa compra uma revista para saber da sua sorte e dá de
cara logo com o quê... Câncer! Chega, não aguento mais ter de escrever
essa palavra. Já basta ouvi-la com frequência por aqui (...)” (2018, p.
27). A 'menina-borboleta' logo de início se pergunta, de forma poética:
“Com quantos tons se retoca a vida de uma borboleta?” (2018, p. 9).
A autora delineia os caminhos de Maria Rosa mesclando a trajetória da
narrativa com poesias, enquanto também intercala situações ‘reais’ da
sua personagem na luta contra a doença, com suas ‘viagens’ pela Floresta
Amazônica: “(...) Luas e aventuras se passaram que eu nem sei contar.
Só sei que houve um dia onde a minha história, ainda que adormecida em
meus sonhos, começou. Minha mãe, uma jovem borboleta que já carregava
nas cores suaves das asas o peso de uma metamorfose sofrida,
alimentava-se e ocupava-se da beleza da bromélia. Meu pai, sempre muito
distraído, atrapalhou-se todo na viagem entre dois canteiros e resvalou a
asa direita no musgo da folha verde da árvore gigante. De repente,
viu-se caído sobre a bromélia vizinha a que pousara minha mãe. Esta
riu-se toda do desastrado. Meu pai, um meninão-borboleta de asas bem
coloridas, primeiro ficou ruge, mas logo em seguida não resistiu e
gargalhou também. Então veio o silêncio formando uma brisa exótica que
não surgia apenas daquele jardim. Meus pais estavam – para a minha
fortuna ou não – de alma ruborizada e asas caídas! (...)” (2018, pp.
15/16).
Desse lugar que raramente pode sair, a menina viaja nas
asas da 'borboleta-imaginação', sempre nutrida por livros, visitando
cidades, lugares, descobrindo poesia, poetas, encantos de outras terras:
“(...) Você me perguntaria como é possível descrever um lugar que eu
nunca estive. Estive sim! Apenas de uma forma diferente de você. Os
olhos, peguei emprestado dos livros. As asas, da borboleta (...)” (2018,
p. 21).
Depois de passar mal pela primeira vez, a adolescente é
levada para o hospital. A descoberta é trágica: “(...) Fiquei esperando
o teto desabar na minha cabeça a qualquer décimo de segundo. E ele
desabou. Eu tenho Leucemia. Não voltarei mais para a creche. Se tiver
sorte, viverei mais uns seis meses. O hospital é o meu novo casulo maior
(...)” (2018, pp. 23/24).
Maria Rosa precisa se acostumar com
seu novo ‘lar’. Sente saudades das crianças da creche, das conversas com
as mãos, os olhos, os ouvidos, sorrisos e abraços. Sente dores de corpo
e de alma. Seu grito é silencioso: “(...) será que existe remédio para a
desesperança? (...)” (2018, p. 25):
Maria Rosa é transferida para a ala de crianças com câncer, um lugar onde, segundo ela, a tristeza é bem camuflada. Renova-se em energia e esperança, volta a ler, a fazer suas ‘viagens’ imaginárias por lugares nunca vistos. Comemora seus 15 anos entre as novas amigas do hospital, com bolo de aniversário e borboletas artesanais. A alegria passageira traz um presente inusitado e permanente: Maria Rosa volta a falar, dizendo “muito obrigada!” A felicidade é geral: “(...) O novo casulo maior abriu meus horizontes literalmente. Devolveu-me a voz (...)” (2018, p. 34).
Maria Rosa é transferida para a ala de crianças com câncer, um lugar onde, segundo ela, a tristeza é bem camuflada. Renova-se em energia e esperança, volta a ler, a fazer suas ‘viagens’ imaginárias por lugares nunca vistos. Comemora seus 15 anos entre as novas amigas do hospital, com bolo de aniversário e borboletas artesanais. A alegria passageira traz um presente inusitado e permanente: Maria Rosa volta a falar, dizendo “muito obrigada!” A felicidade é geral: “(...) O novo casulo maior abriu meus horizontes literalmente. Devolveu-me a voz (...)” (2018, p. 34).
A partir de
então a vida, ainda que triste diante das dores da doença, traz novas
esperanças ao coração da 'menina-borboleta', por meio da voz que se faz
ouvida. Maria Rosa sente o mundo muito mais colorido com a prática do
diálogo, das conversas com sua melhor amiga no hospital, a menina
Márcia. Maria Rosa conversa, lê, escreve, e seu pequeno mundo no quarto
do hospital vai ficando muito maior. Mas a vida em um hospital também
traz surpresas tristes, já esperadas... A menina Míriam, também
internada, faz a 'viagem sem volta': “(...) De repente, o frio. Não
aquele que desejávamos para refrescar o dia, mas o frio que não foi
convidado. O frio que faz um buraco na alma da gente. Hoje não quero
viajar. Miriam partiu e não poderemos mais sorrir com ela. Talvez haja
um adeus que mora dentro da gente aqui no casulo maior. Mas ele não se
pronuncia, não se explica. É um nada que se engasga na garganta da gente
e que é, ao mesmo tempo, necessário. Deveríamos estar preparados para
ele. Na verdade, nunca estamos (...)” (2108, PP. 43/44).
“Adeus,
Por onde anda você?
Quem o inventou?
Quem o convidou?
Quem o entendeu?”
(2018, p. 44)
Por onde anda você?
Quem o inventou?
Quem o convidou?
Quem o entendeu?”
(2018, p. 44)
Maria Rosa faz reflexões sobre sua vida, comparando-se e se sentindo
uma genuína borboleta, em todas as suas fases de curta vida: ovo, larva,
pupa e idade adulta. Lembra do poeta das miudezas, Manoel de Barros,
viaja imaginariamente até Cuiabá, sua cidade natal. A menina também
reflete sobre a solidão das pessoas nas grandes cidades, sobre a falta
de compartilhar as pequenas desimportâncias que nos fazem mais humanos,
sobre os medos e a doença que atinge a todas as crianças naquele casulo
hospitalar, porque “(...) não há muito o que esperar (...)”, embora ela
própria entenda que “(...) se há medo, há também asas capazes de nos
fazer flutuar e sobrevoá-lo (...)” (2018, p. 51).
“O medo e as asas.
O medo é um ser invisível,
feito de um material pesado
e olhos cabisbaixos.
As asas, visíveis ou não,
são tão leves
que abraçam um céu
com olhos de plumas
que apontam rumos.”
(2018, p. 51)
O medo é um ser invisível,
feito de um material pesado
e olhos cabisbaixos.
As asas, visíveis ou não,
são tão leves
que abraçam um céu
com olhos de plumas
que apontam rumos.”
(2018, p. 51)
A vida vai seguindo rumos inesperados naquele pequeno pedaço de mundo e
Maria Rosa descobre que seu amor por sua amiga Olívia é correspondido.
Um amor que ultrapassa as fronteiras da amizade, transformando-se em
profunda alegria. Mas a vida também traz momentos difíceis, com os
efeitos colaterais da quimioterapia, em que o corpo e a alma prostram-se
cansados e entregues. Mas Maria Rosa insiste em acreditar muito mais no
amor do que na dor:
“(...) Amor
– asas sutis
que não se enquadram
em explicações
de ordem.
Sentir explica toda
a desordem".
(2018, p. 75)
– asas sutis
que não se enquadram
em explicações
de ordem.
Sentir explica toda
a desordem".
(2018, p. 75)
Maria Rosa amadurece muito cedo porque a vida lhe exige um alto preço
de compreensão das coisas do mundo, das coisas de fora e de dentro, de
desapegos urgentes, imensos, de costurar em finos fios os horizontes
tão poucos que se estendem bem diante da sua vida que urge, que ruge,
grita, esperneia, acalma, e ainda encontra linhas de remendar alheias
esperanças e consolos: "(...) Amizade/é aquela via de mão dupla/que não
necessita de carros,/mas de asas e corações" (...) (2018, p. 83). Porque
a vida - toda a vida - sempre é por um fio, às vezes meada, novelo,
carretel, às vezes corda grossa, comprida, às vezes cordão de amarrar
imensas tempestades anunciadas e desmedidas, às vezes tênue linha que
vai subindo aos poucos céu acima, feito papagaio, pandorga ou pipa, até
que o fio se solte, se rompa - e finalmente voe solta - à procura de
horizontes outros no vertical azul do caminho onde estrelas também
sonham o sonho justo do infinito...
Esse livro é todo feito de
asas. A todo momento você se depara com asas. De borboletas. Da
imaginação. Dos bons sonhos da menina Rosa. De poesia. Das suas próprias
asas, enquanto lê. Esse livro é todo feito de amor. De dor e de
esperança. De tantos pesos desmedidos e de aéreas levezas. Feitas de
asas. Porque "(...) só as coisas pequenas cabem na leveza da alma (...)"
(2018, p. 120)
Esse livro é sobre eu e você. E borboletas. Porque borboletas também são poetas de ventanias e esperanças.
Recomendo muito esse voo!
Borboleta - a menina que lia poesia
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